segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Limites

A sociedade se solidifica com o compartilhamento de valores em comum entre os indivíduos. Porém, dada a diversidade e heterogeneidade humanas, esses valores são preponderantes, jamais consensuais. Isso é muito bom, pois, em caso contrário, teríamos uma construção social claustrofóbica, incapaz de abrigar a necessária pluralidade de ideias e comportamentos. Com o avançar do tempo, e a mudança cada vez mais acelerada dos costumes, esses pilares conceituais vão se tornando cada vez mais frágeis. Tudo parece caminhar na direção de que nada é definitivo ou inquestionável. Num mundo onde o dinheiro parece ser o único parâmetro, tudo pode ser vendido, sem restrições ou pudores de qualquer espécie. No entanto, será que é assim mesmo? Teríamos atingido um estágio civilizatório onde todas as restrições foram removidas e tudo pode ser transacionado? Uma matéria da edição dessa semana da revista "Veja" coloca esse assunto em discussão. Tendo como mote o caso da catarinense Ingrid Migliorini, de 20 anos, que pôs em leilão a sua virgindade, a revista propõe a reflexão sobre a ideia de que tudo pode ser vendável. A posição de "Veja" é de que valores familiares, ideais e senso cívico são inegociáveis, mas, cada vez mais, há quem defenda o contrário. Tenho uma visão libertária em termos de moral e costumes, mas entendo que a comercialização indiscriminada de qualquer coisa, incluindo venda de órgãos, bebês, cobaias humanas e de sangue para transfusões, degrada a condição humana. O ser humano, numa condição assim, se despe da sua dignidade, e se torna apenas mais um objeto. Por incrível que pareça, contudo, há quem defenda o contrário. O economista Gary Becker, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1992, é a favor do comércio de órgãos! Para Becker, a venda de órgãos acabaria com o mercado negro, reduziria a espera por transplantes, evitaria a morte de muitas pessoas e não teria impacto considerável nos custos médicos globais desse tipo de procedimento clínico. O jurista americano Richard Posner, por sua vez, acha que a venda de bebês eliminaria a burocracia envolvida no processo de adoção e reduziria filas de espera em orfanatos. Posner argumenta, também, que as crianças sairiam ganhando, por serem criadas em lares com melhores condições econômicas. Felizmente, outras figuras intelectualmente tão respeitáveis quanto Becker e Posner, tem uma visão oposta. Uma delas é o filósofo Michael Sandel, da Universidade de Harvard. Sandel reconhece que o mercado produz riquezas materiais, mas afirma que sua lógica não pode dominar todas as relações entre as pessoas. Não se pode, declara Sandel, explicar todo e qualquer comportamento humano em termos puramente econômicos, pois essa visão desconsidera os valores morais, as atitudes e as complexidades das relações entre as pessoas. Não é à toa que Sandel é um filósofo. Tivesse a filosofia um maior peso no mundo atual, e, certamente, essa mercantilização da vida não estaria no patamar em que se encontra. Trata-se de mais uma demonstração de quão aviltante pode ser uma sociedade que valoriza apenas o lucro e as vantagens materiais, e da capacidade quase inesgotável do capitalismo de promover a degradação do ser humano.